segunda-feira, 5 de maio de 2014

Devora-me ou te decifro: monólogos do espelho sob o apelo de Sontag

“Texto quer dizer Tecido: mas enquanto até aqui se tomou sempre esse tecido por um produto, um véu perfeito, por detrás do qual existe, mais ou menos escondido, o sentido (a verdade), acentuamos agora, no tecido, a ideia generativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçar contínuo; perdido nesse tecido – nessa textura – o sujeito desfaz-se, tal como uma aranha que se dissolvesse a si própria nas secreções construtivas da sua teia. Se gostássemos de neologismos, poderíamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos é o tecido e a teia de aranha).” R. Barthes


A verdade é que tenho medo. Medo desse momento propício à queda do Véu de Isis. Medo da leitura epidérmica. Das estruturas pré-ordenadas. Do devir que repousa sob a dinâmica da narrativa. E de tudo mais que aflige o estômago de Sontag.
Essa espécie de convesão do conteúdo ideal num dado sensível, também um ato estético, vez que uma forma de percepção, produz a separação contraditória de corpo e espírito em dois nacos, como se não fosse a caligrafia uma mera projeção. A transformação da “substância” em “suporte”, que é também um deslocamento da libido, seria mais covarde que o ato de lançar sobre a cifra o nosso estrondo agonizante?
Vinte minutos de pulsão poderiam ser escritos em um número incontável de linhas e em ilimitados acordes dissonantes, à moda daquilo que só se apreende no limbo das sensações inauditas. Vinte minutos escondidos num gesto mudo, de junção corporal substitutiva de um diálogo desprovido de lógica, para além do “devora-me ou te decifro” da matriarca egípcia desse (des)encontro. Cento e oitenta batimentos por minuto que contrariam, escancaradamente, o metrônomo tradicional. Que tempo é esse que nos move (tão) longe e (tão) perto numa órbita fugidia, feito gravidade volátil inapreensível que só cabe no signo das nossas intenções?
Aniquilar os conflitos produzidos pelo antagonismo em matéria de anima, à evidência da antítese, numa dialética de ideia e de forma, que dissolve todas as nossas reticências numa única ação (cento e oitenta batimentos por minuto, contrariando escancaradamente o metrônomo tradicional). E depois retornar à nossa dramatização épica de todos os dias, no leito tranquilo do qual não nos movemos, menos por medo que por resistência à alter ação. Se fôssemos porosos o bastante, essa fenda poderia se tornar insuportável?
Tecer essas linhas de espírito sobre o peso do corpo e remeter ao campo do significado o nosso significante, que pouco a pouco compreendemos, no teatro épico da nossa representação. E depois aguardar a síntese final absoluta, tomada como verdade, num campo que bem sabemos pertencer a um ideal intangível. Não se trata de uma identidade de opostos, mas de um distanciamento que aceitamos eterno, porque não nos fere tanto quanto o vazio diário.
Texto quer dizer tecido e quando rompe as artérias salta pelos poros, fazendo-se tintura sanguínea que se espalha sobre a face telúrica de uma manhã de segunda, rompendo o medo de dissolver-se na leitura epidérmica, como um ato de coragem ante o mundo da interpreta-ação.
Porque a alteridade é um desafio diário e um sedativo anímico, que quando cala a veia produz o coágulo que acarreta a trombose. Escrever é uma maneira de manter-se vivo apesar da anestética que aflige o estômago de Sontag. A secreção construtiva que produz nossa teia de aranha para que não pereçamos perante a realidade (ou para que ela não nos destrua).
Textura da vida ou tessitura da alma: que brota da veia obstruída para dar vazão à nossa explosão torrencial iminente.

domingo, 4 de maio de 2014

Adágio em lá menor...

"Esperar" é verbo intransitivo.
"Não esperar", também. 

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

"Tenho pudor da loucura"

(Agradecimento discreto à Lygia Bonjunga Nunes)
 
A colcha de retalhos que compunha a sua vida já não era tão maleável quanto aquela que  integrava os seus versos...
Era difícil, pois, recompor novos desenhos, recombinar as cores, equilibrar os pesos dos mais diversos tipos de tecido, agora ajustados rigidamente no composto global que lhe cobria a vida.
Se por obra do tempo ou de sua resistência a mudanças, era impossível saber. Mas o fato é que fora vitimada por suas próprias convicções resolutas, a respeito de cada uma das circunstâncias inevitáveis da vida.
Que tivesse, então, escolhido como composição a objetividade fugaz das crônicas! Ou quem sabe a leveza irresistível da tão almejada poesia (mas nascera presa demais).
Tendo optado pela retórica verborrágica dos romances infindos, restara trancada nas próprias páginas por ela tecidas. Na fenda de suas conjecturas. Nas frestas de uma inconstância adiada.
A sua falta de consanguinidade com o mundo se refletia dia pós dia na ausência de funcionalidade para lidar com necessidades práticas. Viver em verso era, escancaradamente, muito mais uma patologia incurável que uma mera aspiração.
Mas se sua colcha de retalhos já estava tecida e envelhecia paulatinamente na gaveta empoeirada do tempo não lhe restava muita coisa para além da composição de sonhos. Porque desde sempre fora devota de objetivos tangíveis que programava, cumpria e concluía alcançáveis. Talvez fosse chegado o momento de começar a sonhar.
Perdida assim no devaneio onírico da pequena janela que repousa sobre o inacessível, alcançou a seguinte constatação: poderia descosturar, um a um, os retalhos da colcha para ressignificar, em seguida, aquela existência cansada.
Porém, não demoraria muito para que lhe viesse à mente o fantasma que atormentara seu amigo pintor ao tentar desfazer o irreversível nos bastidores do palco: não era costura, era tintura! E, na hipótese de não se poder separar os retalhos indesejados, tudo se convertia na mais profunda cor de saudade.
Ciente do avesso, rendeu-se ao frio que lhe fazia confortar-se à colcha de retalhos que assegurava, de uma maneira ou de outra, uma pequena sombra de sentido. Quem sabe assim dormisse e pudesse tangenciar por pequenas frações de segundo aquela quintessência tão desejada. O inapreensível era o arquétipo em que construía a sua fascinação pela arte e a sua preocupação excessiva (insuportável a si e aos outros) com propósitos humanitários e questões sociais. Sendo assim, não restavam mais dúvidas: era necessário dormir.
Afinal, se sonhos eram fruto de seu imaginário, não seria difícil atingir no plano de suas metáforas ridículas o colorido que pretendia lançar na maquete em preto e branco sobre a qual tinha edificado sua vida (de fato não era costura).
“Tenho pudor da loucura” - pensou. “Mas amanhã o relógio me despertará do hospício fundamental secreto e voltarei enfim à rotina daqueles que não se permitem sonhar mais”.

PS: Adendo acerca de três acepções pertinentes à metáfora concreta:
Onirismo (do grego “oneiros”, que significa sonho)
1. Refere-se a um estado mental que costuma ocorrer em síndromes confusionais e é constituído por um conjunto de alucinações visuais፣ interagindo entre si e com o "sonhador"፣ enquanto este está acordado;
2. Sintoma de transtornos psicóticos, manias, abuso de substâncias que tenham efeitos alucinógenos ou ao menos de prolongada privação de sono;
3. Experiência sobrenatural que pode ser punida ou estimulada socialmente de acordo com a cultura da região e as características peculiares de cada onirismo.

terça-feira, 30 de julho de 2013

Sobre Kierkegaard e outros anseios...


E depois de ver escorrer por água abaixo aquela esquizofrenia voluntária, finalmente era chegada a hora de implicar com a política.
_ Pequenas farpas quotidianas! – pensava. _Pequenas farpas...
A sensação de sentir enfadonhas todas aquelas coisas lhe era um incômodo que tornava ultrapassada qualquer filosofia lusitana. Era preciso superar as barreiras do tédio e alcançar ordinárias espécies de problemas quotidianos. Quem sabe estudar para o cargo de tabelião?
_ A troco de quê? Se seguisse a sua lógica acerca da eterna insatisfação humana certamente careceria de qualquer coisa que lhe conferisse pequenas doses de sentido.
_O pequeno resquício de sentido que abriga nosso ponto expediente não é o bastante para o que fomos... Cemitério de grandes pretensões. Quem sabe de acorrentados anseios.
O relógio invisível registrava as cinco horas daquela tarde de terça sem qualquer outra aspiração para além da novela das oito. A vontade de buscar a felicidade no casamento era uma parasitose atávica ou um vício social?
Fosse como fosse, o seu modo subjuntivo remetia à hipótese acovardada de não enfrentar o imperativo daquela realidade inevitável: oito horas por dia, quatro horas por noite, treze viagens inesquecíveis ao longo da vida e a hora da estrela de seu ponto final.

Post Scriptum: “Come cachorros-quentes, pequena; Come cachorros-quentes! Olha que não há mais metafísica no mundo senão cachorros-quentes. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a datilografia. Come, pequena suja, come!” (Paródia macabeica ou Tabacaria adverbial)

sexta-feira, 19 de julho de 2013

O senão da prosa...

Malwares invadiram este sistema:
Calado para manutenção.

sábado, 27 de outubro de 2012

Texto não literário:

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Entrelinhas de uma sinceridade pudica
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Conta-se acerca da Torre de Babel que fora construída em tempos remotos com o objetivo de unir seu cume ao céu, glorificando eternamente o homem. Como não agradasse o teocentrismo visionário propósito, teria recaído sobre os seres o castigo da incomunicabilidade, dividindo o mundo, desde o Tigre e o Eufrates, em diversas e incontáveis línguas. A inteligência humana, que pouco prospera mas a nada se rende, não tardaria, em sua presunção de romper tamanha barreira, a encontrar uma forma de driblar a praga celestial. E foi assim que o telencéfalo fez do aprender uma eficaz estratégia em prol do entendimento universal. 
Encantadora lenda, porém em muito falaciosa. Pois os milhares de anos que se seguiram não foram capazes de banir sequer minimamente a incomunicabilidade da face da terra. Por detrás da língua ainda habita o hiato de uma distância silenciosa e fecunda, tornando a linguagem (de onde nasce a interação) uma reles metáfora. Vem daí o estado de solidão disfarçado sob as vestes de uma proximidade tão falaciosa quanto a lenda que lhe refuta.
É por isso que o olhar fala mais que as palavras. É por isso que o toque acaba sendo a melhor forma de encontro. É por isso que não entender é o caminho mais rápido para tangenciar a essência. A prosa  esculpida e lapidada não alcança o código que extasia as veias de maneira tão eficiente quanto a poesia. E a música - Ah, música... - é ainda sem dúvida a maneira mais agradável de se equacionar a matemática dos campos celestes.
Celestes? Talvez o artifício lendário divino tenha se prestado justamente a desconstruir a lógica da nossa necessidade de um sentido que não se sabe viver sem ser explicado. Isso se relaciona em muito com a comunicabilidade entre as pessoas e as coisas, mas talvez não tanto entre os seres humanos. Estes - protagonistas da notória Torre - não se entendem por nascerem envoltos em epidermes de espelho. Distantes demais, assim é a lógica da vida. Acertados portanto os dizeres da música que não me pega tanto pelo texto quanto pela canção. E surgiu daí a minha necessidade de voltar à poesia, nascida casualmente na manhã de hoje. Quem sabe assim eu experimente de mais e reclame de menos. O contato com a substância que me faz bem desde a primeira vez em que afastei da forma. Em que me livrei da fôrma - essa camisa de forças que encerra a vastidão da palavra no código ignóbil de um supérfluo signo. No mais - como sempre há de ser - tudo é poeira e poesia. 

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Um discurso amoroso em fragmentos...

O erro essencial de Magritte foi ter esquecido de acrescentar os espelhos.